sexta-feira, 3 de agosto de 2007

AQUELA CAMPAINHA IMPIEDOSA

A campainha tinha a forma de pêra e um ar perfeitamente inocente e frágil. O toque perscrutava-nos a alma diariamente. Ritmada, nervosa, aguda e enrouquecida quase a perder a voz quando não era acudida a tempo.
Era a via de comunicação entre nós e o Pai, recolhido por tempos perdidos no quarto. O Pai está no quarto, o Pai não sai do quarto. Cada tipo de toque traduzia um estado de alma. Para nós aquele som era sempre recebido com temor. Agora és tu, eu já lá fui duas vezes. É para ti. Muitas vezes, mal tínhamos saído do quarto e já se ouvia uma réplica.
A limonada com 3 kg de açúcar, o bacon frito e os paparis compreendiam algumas das tarefas mais comuns que se seguiam aos toques da campainha. O bacon frito era dos diabos, cortado às tiras muito fininhas e extra crispy, se não ia para traz. Os paparis lourinhos e se possível baixinhos. Também houve a época das frutas, tangerinas ou laranjas (quem sabe do Loge), devidamente arranjadas. As nêsperas (igualmente designadas por tortesilhas) eram particularmente chatas pelo trabalho empreendido no descasque. Outras modas sucediam-se e embora não envolvessem confecção culinária obrigavam umas idas à leitaria Nogueira. A mania dos chocolates, os holydays e os packs, dos iogurtes naturais (com 7 colheres de açúcar), dos “sumois”, creio que com excepção do de ananás.
Outras empreitadas de natureza variada eram igualmente assinaladas pelo toque da campainha. Os jornais, os pachos de álcool, o leva daqui e põe ali, os remédios, o acender a televisão, antes de existirem os comandos à distância. Tudo e mais tudo. A campainha era tão obsessiva como os pedidos de quem os fazia.
A importância da campainha aumentava na razão directa da imobilidade do Pai. Se era raro que ele se deslocava enquanto ainda podia, por fim isso era um dado adquirido e que diga-se em boa verdade nos descansava bastante.

No período final da vida a campainha alcançou o auge da sua importância na ligação entre o quarto e o resto da casa. Foram muitos maços de tabaco Paris sem filtro que foram dando cabo da capacidade respiratória e que acompanharam uma existência angustiada, nervosa e muito pesada para os outros.
A situação do Pai era uma inevitabilidade que se tinha que aceitar com desespero. Naquele tempo eu não sabia o que era o papel de Pai, e embora soubesse que na generalidade eram sempre uns seres mal dispostos, ausentes e pouco “ajudativos”, tinha a consciência que se cometiam exageros, lá em casa. Por outro lado, o papel de marido assim representado era também um horror e correndo o risco de fazer psicologia caseira não sei se não será por isso que o casamento sempre representou para mim uma ideia repugnante.
Hoje à distância já não penso só nos outros (que éramos nós) mas no que sentiria o Pai, no que seria ele se não lhe tivessem amparado os golpes baixos desse modos de ser homem. Ele era inteligente e tinha um grande sentido de humor, mas um interior doente que dificilmente se deixaria ajudar. Não interessa saber como teria sido se outros se’s se tivessem atravessado mas tinha curiosidade de o conhecer com os olhos que tenho hoje. Agora que a campainha já não me magoa e que sempre assumi friamente que não gostava dele, reconheço que me enganei e sei que lhe devo muitas coisas. Adoro o livro do Alberto Caeiro que ele me ofereceu e autografou e que tem o meu poema favorito “o guardador de rebanhos” / poema nº VIII. Dou-o sempre a mostrar às pessoas de quem gosto e a ver se não me esqueço de o ler às miúdas.









[….
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.]





[11 de Março de 06]

2 comentários:

a glória do vulgar disse...

extra-ordinário texto. não sei se estavas ou não enganada (na vida, o quarto, a campainha, os pais). na escrita tenho a certeza de que estás absolutamente certa. por favor continua.

rosava disse...

que bonito, isto.